Quem pode ir ao cinema?
Na indústria cinematográfica, a obrigatoriedade de recursos de acessibilidade é uma briga antiga. Mas foi só a partir de 2014 que todas as obras fomentadas pelo governo federal tiveram que disponibilizar, sem falta, legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e janela de Libras. Vitória!
Já nas salas de cinema, a implementação da lei que obriga os exibidores a disponibilizar sessões com esses recursos virou uma saga mesmo: foram idas e vindas, com inúmeras revogações de data de início. Isso porque a disponibilização dos recursos de acessibilidade vai muito além da produção dos mesmos - o que, por si só, já configurou um desafio cultural para distribuidoras e produtoras, que tiveram que se adaptar e incluir em seus orçamentos essas modalidades. Uma das maiores barreiras encaradas pela indústria está do lado do exibidor, as próprias salas de cinema, que precisam de milhões e milhões de reais para adaptar seus modelos atuais de exibição para um modelo inclusivo.
Lembra da saga da obrigatoriedade? Bem, ela dependia da liberação de recursos do governo que auxiliariam os exibidores a adaptar seus espaços. E, no início deste ano de 2020, quando estávamos na boca do gol, com todos os recursos liberados pelo governo, veio a pandemia e os cinemas fecharam. Derrota.
Mas até agora só falamos de economia e política! E as pessoas com deficiência?
Não é preciso apontar que a falta de acesso aos produtos culturais produzidos no Brasil e lá fora é um fator de alienação das populações com deficiência. É preciso lembrar que, além do direito à informação, temos direito à arte e ao entretenimento, elementos que constituem e evoluem nossa humanidade. São, portanto, um direito básico!
Enquanto governo e empresas da indústria fazem seu cabo de guerra, outras questões relativas ao acesso ficam pendentes de reflexão: uma vez que os recursos de acessibilidade estiverem 100% produzidos e adequadamente disponíveis nos cinemas, isso quer dizer que o cinema está acessível? Bom, vamos pensar em todos os passos que damos antes de chegar ao cinema.
Muito antes de sentarmos felizes e pimpões com a pipoca no colo diante da telona, lá do conforto de nossas casas fazemos nossa pesquisa on-line para saber quais são os filmes em cartaz e as sessões disponíveis. Podemos fazer nossa compra antecipada, ou chegar um pouco mais cedo e comprar o ingresso na bilheteria. Daí então, talvez, possamos passar na bomboniere e comprar o refri e a pipoca, e seguir para a sala - que, frequentemente, exige a subida de alguns lances de escada. Chegando lá, vamos procurar nossos acentos olhando os números impressos nas poltronas.
Todas essas coisas básicas, que fazemos sem pensar duas vezes, são barreiras imensas para, por exemplo, pessoas cegas ou com baixa visão. Assim, ficam os seguintes questionamentos: os sites de programação e compra de ingressos são acessíveis? As bilheterias possuem sistema de pagamento acessível e funcionários devidamente treinados no auxílio de pessoas com deficiência? Como podemos garantir que uma pessoa cega tenha a dignidade de poder comprar sua pipoca com refri e carregar tudo até a sala sem abrir mão da sua bengala e sem precisar subir um lance de escadas? Por fim, as poltronas têm números gravados em braile? Veja bem: o problema não está nas pessoas, mas sim no ambiente!
Não dá para fingir que não há complexidade na mudança (seja física ou de mentalidade), nem acusar certeiramente pessoas físicas, jurídicas ou governamentais de descaso ou má vontade. E como frequentemente me pergunto se o pulo do gato não está na forma como enxergamos as coisas, desconfio que esse seja o caso aqui também. Precisamos deixar de ver as pessoas com algum tipo de deficiência como vítimas, e passar a vê-las como indivíduos que se devidamente empoderados pelo ambiente, terão maior controle sobre suas vidas. Dessa forma, estarão mais aptos a consumir e contribuir para a economia, e ninguém sai perdendo.
Há tempos que o cinema batalha contra o obsoletismo, diante de toda a concorrência colocada por formas mais baratas e convenientes de entretenimento. Está mesmo na hora de o cinema se reinventar, criar experiências novas e únicas. E o meu palpite é que essa reinvenção pode ser através de um ambiente mais inclusivo ;)
Ligia Sobral Fragano nasceu com um pé no cinema. Neta de cineasta e filha de tradutor para cinema, formou-se linguista e legendadora, atuando na área há mais de 15 anos. Desde 2014, está à frente da Little Brown Mouse, empresa de tradução audiovisual e produtora de acessibilidade que trabalha para que todas as pessoas possam aproveitar a experiência audiovisual.