A vida imita a arte: Sobre a representatividade da pessoa com deficiência no mercado de trabalho artístico
Após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida como “Constituição cidadã”, os princípios fundamentais, e em especial os princípios da igualdade, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana, ganharam força normativa. Isso significa que eles deixaram de ser mera orientação legislativa para se tornar uma norma efetiva que deve ter aplicação imediata.
Nesse contexto, foram criadas novas normas jurídicas visando garantir a aplicação efetiva desses princípios, em especial para a parcela da população socialmente marginalizada ou hipossuficiente, ou seja, segmentos da população que, por alguma razão, necessita de maior proteção legal. As pessoas com deficiência, fazem parte desse grupo.
Segundo dados do último IBGE, sabe-se que 24% da população brasileira possui algum tipo de deficiência. Porém, não vemos todas estas pessoas circulando pelas ruas, estudando ou inseridas no mercado de trabalho.
A situação é ainda mais restrita nos segmentos em que a estética ou a exposição da pessoa com deficiência são determinantes, como, por exemplo, o trabalho artístico.
Nas artes é raro depararmos com o tema da pessoa com deficiência e quando isso acontece normalmente é interpretado ou representado por artistas sem deficiência, fenômeno denominado de “crip face”. Mais raro ainda é assistir a algum filme, série, novela, peça de teatro ou até mesmo a apresentações de dança ou musicais com artistas com deficiência, seja este o tema central da trama ou não. Por que isso acontece? Será que não temos artistas com deficiência no mundo ou até mesmo no Brasil?
Sabe-se que, assim como os esportes, a musicoterapia, a dança, o psicodrama, o teatro, enfim, expressões artísticas são excelentes atividades para reinserção da pessoa com deficiência na sociedade. Não é incomum pessoas sofrerem acidentes ou apresentarem, ao longo da vida, doenças como AVC, Alzheimer, etc e, em razão disso, não conseguirem mais exercer atividades que faziam anteriormente. Muitas delas optam por reaprender movimentos e, nesse contexto, as atividades artísticas são muito procuradas. É comum a pessoa com deficiência aprender a pintar, a desenhar, a cantar, a tocar instrumentos, atuar e dançar.
A arte é terapêutica, a arte cura, a arte proporciona convívio social, trabalho em equipe, auto-conhecimento e a compreensão do outro como indivíduo único com todas suas características. Consequentemente, por meio da arte é possível (re)inserir pessoas na sociedade e despertar talentos para nova carreira profissional.
A inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho artístico, por ser uma carreira de exposição pública, é extremamente relevante, não só para o profissional incluído, como para o público que deseja ver este trabalho, podendo ser um grande gatilho de inspiração e representatividade.
Ao ver um artista com deficiência na mídia audiovisual ou no palco, outras pessoas com deficiência que gostam de arte e que tem um sonho de exercê-la profissionalmente passarão a considerar a carreira como uma realidade fática.
Logo, nota-se claramente que a inclusão laboral da pessoa com deficiência só traz benefícios para toda a sociedade; e o mercado de trabalho artístico não seria diferente. Ao contrário, por ser uma carreira pública, a visibilidade desse trabalho tem muito maior amplitude e repercussão social.
Podemos citar alguns exemplos de pessoas com deficiência no universo audiovisual: a atriz Jamie Brewer, que nasceu com Síndrome de Down e trabalhou em American Horror Story, Murder House e Coven. No Brasil, importante citar o ator, diretor e roteirista, Ariel Goldenberg, também com Síndrome de Down, conhecido pelo público por ser um dos protagonistas do filme”Colegas”, escrito e dirigido por Marcelo Galvão; o ator Flávio Silvino, que sofreu acidente e interpretou o personagem Paulo, na novela “Laços de Família”, de Manoel Carlos; a atriz Danieli Haloten, que interpretou a primeira pessoa com deficiência visual em telenovela, em “Caras & Bocas” de Walcyr Carrasco; Lucas Dutra Takaki, que nasceu com um tumor na coluna vertebral que comprimiu sua medula e o fez perder o movimento das pernas. O menino interpretou Tom na novela “Carrossel”, hoje é tenista e pretende disputar a Paraolimpíada. Outro exemplo é Luciano Mallmann, ator e diretor do monólogo “Ícaro”, que após sofrer uma queda em um treinamento de acrobacias, lesionou a medula e passou a usar cadeira de rodas. E ainda podemos citar: Mona Rikumbi, Amanda Mittz, Edgar Jacques, Tabata Contri, Léo Castilho, Giovanni Venturini, Cleber Tolini, Edivaldo “Edinho” Carmo, Isete Najla, Billy Saga, Rapper Craly, dentre tantas outras dezenas de nomes.
Quanto a outros tipos de arte, temos: Huang Guofo, que perdeu os dois braços em um grande acidente quando ele tinha apenas quatro anos e começou a pintar com os pés e a boca aos 12 anos; Stephen Wiltshire, diagnosticado com autismo, que se tornou famoso por produzir cenas altamente detalhadas depois de apenas um rápido olhar; Doug Jackson, nascido com paralisia cerebral, que pinta desde os 11 anos com um pincel preso à sua testa e ficou reconhecido por sua arte impressionista, Brian Tagalog, que é o único tatuador certificado sem braços no mundo..
Apesar dos exemplos supracitados e de outros que poderíamos mencionar, o trabalho de artista com deficiência e o tema da deficiência nas artes ainda é ínfimo perto das obras e artistas no mercado. Ademais, o tema ainda é tratado de forma romantizada sem o cuidado e atenção que merecem.
Por isso, a representatividade é essencial para mudança de paradigma e é uma excelente ferramenta para ampliação da inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho de forma ampla, além do artístico.
Como diz o ditado, “a vida imita a arte.” Então, a arte deve, também, representar a vida como ela é ou, pelo menos, como “deveria ser” para garantir princípios constitucionais básicos e a formação de uma sociedade equânime, inclusiva e sem preconceitos.
Marcella Buccelli é advogada, membra da Comissão da Pessoa Com Deficiência da OAB/SP. É especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Aluna de cursos livres e grupos experimentais de teatro.